Sobre o filme “O Homem Bicentenário”

Advertência: se você não viu este filme e ainda pretende vê-lo, não leia o texto a seguir, pois ficará sabendo o final. Estes comentários foram feitos, em princípio, para serem compartilhados com quem já viu o filme.

Baseado no conto “O Homem Bicentenário” de Isaac Asimov e no romance “O Homem Positrônico”, de Asimov e Robert Silverberg, o filme conta a fantástica história de um robô da classe NDR-114, da NorthAm Robotics. Esse modelo fora projetado apenas para “executar tarefas domésticas rotineiras, cozinhar, limpar, fazer pequenos consertos, supervisionar ou brincar com as crianças”. Entretanto, um defeito de fabricação faz com que este robô especificamente tenha um destino muito diferente de todos os outros iguais a ele.

Na ficção de Asimov, um cérebro positrônico é um artefato que simula, até certo ponto, o funcionamento do cérebro humano. Seus neurônios e sinapses são artificiais, eletrônicos, mas sua capacidade de aprender é real. O defeito na fabricação deste robô, ao invés de torná-lo menos hábil ou mesmo incapaz de alguma tarefa, lhe deu uma capacidade extra de aprendizado. Com o tempo, sua disposição inata para aprender foi apresentando resultados e seu comportamento começou a se diferenciar do que se esperaria de um robô comum.

Com o passar dos anos, décadas mesmo, o robô adquire personalidade própria e passa a aspirar por sua liberdade. Quando finalmente a consegue, deixa de chamar a si mesmo de “isto” ou “coisa” (“it”, em inglês) e passa a chamar a si mesmo de Andrew.

Ao longo de seus duzentos anos de existência, Andrew promove alterações em seu próprio corpo, deixando de ser um típico homem de lata e adquirindo a aparência física idêntica à de um homem. Paralelamente a isso, percorre um caminho de aprendizado e realização pessoal que tem seu ápice quando ele reivindica ser considerado um ser humano.

Há muito que observar e refletir sobre esta história:

A primeira coisa notável, é que se trata de uma ficção científica realmente científica, sem desvios para fenômenos sobrenaturais ou paranormais. Também não é mais um daqueles filmes de ação e ficção científica em se substituem revólveres por armas de raios e carros turbinados por naves espaciais, mas cujos enredos repetem histórias de detetive ou de mosqueteiros.

Outro aspecto interessante é que se trata de uma ficção científica que apresenta uma visão otimista do futuro, ao contrário da grande maioria dos filmes dessa categoria, que ou trata de catástrofes ou de cenários futurísticos onde o homem se encontra em condições degradantes. Note-se também que não há vilões nessa história. Há conflitos de interesses e dramas pessoais, mas não há nenhum personagem intrinsecamente mau.

O filme trabalha com muitos valores:

A aprendizagem contínua: o robô utiliza todo instante de sua vida para aprender, seja nas suas relações com as pessoas ou em livros e, certamente, meios eletrônicos.

A criatividade: a falha de fabricação no robô o tornou criativo como um ser humano e ele usa isso o tempo todo, primeiro com simples trabalhos manuais, mas depois chegando a produzir inovações na ciência e na tecnologia.

A liberdade: o robô conquista sua liberdade, demonstrando que esta é uma aspiração básica, uma condição fundamental para um ser criativo.

A individualidade: a partir do momento em que se torna livre, o robô adota um nome, num gesto simbólico de que ele não é mais um eletrodoméstico, mas um indivíduo.

A independência: desde o início de sua vida livre, ele mantém a si mesmo, não dependendo mais de seu antigo dono, nem no aspecto financeiro, nem para tomar qualquer decisão em sua vida.

A laboriosidade: o robô sustenta sua existência por meio do seu próprio trabalho.

A família: é valorizada na história. O aprendizado inicial do robô acontece dentro de um ambiente familiar. Parte de sua “personalidade” certamente é conseqüência disso, pois os modelos que ele tinha eram pessoas que viviam num ambiente de amor e cordialidade.

A auto-estima: o robô sabe do seu próprio valor e também de sua diferença em relação aos seres humanos com quem convive. Sabe que é diferente, mas não se sente inferior.

O respeito e a tolerância: O reconhecimento de suas diferenças com relação aos seres humanos, certamente o fez ciente de que seu cérebro artificial era superior em muitos aspectos ao cérebro humano. Entretanto, ao contrário de outras ficções desse gênero, nesta história o robô não desvia seu comportamento para nenhum tipo de tentativa de dominação da humanidade.

O amor e a amizade: como reconhecimento de valores em outras pessoas, como prazer pela convivência com pessoas que valorizamos e que nos valorizam.

A ética resultante das três leis da robótica de Asimov permeia toda a história e merece ser analisada. A leis são as seguintes:

Lei 1: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

Lei 2: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos que em tais ordens contrariem a Primeira Lei.

Lei 3: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis.

É possível estabelecer paralelos dessas leis com mandamentos éticos humanos e simular situações para ver qual seria a ação de um robô, segundo essas leis, e qual seria a ação de um ser humano. Para esquentar a discussão, pode-se introduzir também a Lei Zero, apresentada posteriormente também por Asimov. A Lei Zero tem prioridade sobre as demais e diz que “um robô não pode fazer mal a humanidade e nem, por inação, permitir que ela sofra algum mal.” Isso permitiria, por exemplo, que um robô matasse um ser humano, desde que fosse para salvar outros.

Outra possibilidade de reflexão sobre a história são seus aspectos simbólicos:

O nome que robô escolheu para si mesmo, Andrew, vem do grego “andrós”, que significa homem. Não parece ter sido uma escolha aleatória.

O “defeito” na fabricação de Andrew é comparável aos defeitos de seqüenciamento genético que determinam mutações nos seres vivos e, por tentativa e erro, a evolução das espécies.

Ao longo de sua existência, Andrew faz uma busca interminável por sua própria humanidade, que pode ser comparada com a busca de qualquer pessoa por sua aceitação no grupo em que vive.

Na condição de robô, Andrew poderia viver indefinidamente, sem envelhecer e nem sequer adoecer. Encarnava o sonho de imortalidade de todo ser humano. Entretanto, sua imortalidade era um dos maiores empecilhos para que ele fosse considerado humano. Um ser imortal não deve ter valores sequer semelhantes aos valores humanos. Deuses imortais estariam tão longe da humanidade quanto um robô imortal. Andrew optou pela mortalidade porque esta era uma característica essencial da condição humana a que ele aspirava..

Andrew morreu sem ouvir o veredicto final sobre sua aceitação formal como ser humano. Morreu como um ser humano, sem respostas cabais para dúvidas sobre a natureza de sua própria existência.

Finalmente, a história nos permite refletir sobre a própria individualidade: somos apenas nosso cérebro (positrônico ou biológico) ou temos uma alma? E um robô poderia ter uma alma? E se existissem robôs como Andrew, em tudo semelhantes ao homem, ainda assim seriam apenas brinquedos sofisticados? Neste caso, não seríamos também nós, humanos, apenas brinquedos biológicos?

É isso: uma história e muita coisa para pensar. Eu recomendo!