10 de agosto de 2006

Vida aos Quarenta



(Escrito em abril de 2000)

Quase oito.

O dia já acabou, mas a noite ainda está clara, talvez porque o céu fechado com nuvens baixas reflita as luzes da cidade.

São poucos os dias em que me pego pensando na vida numa hora dessas. Normalmente, esses períodos de reflexão só acontecem quando me deito, quase sempre depois da meia-noite, nunca às oito.

Na verdade, dezenove e cinqüenta e oito.

O tempo não pára e eu me lembro o quanto isso é dolorido naquelas manhãs em que o corpo implora para ficar na cama, dormindo um pouco mais, mas o relógio insiste em me lembrar que é hora de levantar.

Dezenove e cinqüenta e nove.

Interessante. Os números no relógio digital poderiam ser lidos como se fossem anos e não hora a minuto. Neste caso, estaríamos em 1959, segundo meu relógio.

Fiquei me imaginando numa máquina do tempo com uma janela pela qual eu pudesse ver o passado e aquele relógio um indicador do ano pelo qual eu estivesse passando, numa corrida de um ano a cada minuto. Há pouco, às dezenove e cinqüenta e oito, teria passado pelo casamento dos meus pais. O que estaria vendo naquela janela? A maneira de se vestir daquele tempo, a guerra fria, as coisas feitas de uma forma diferente, sem computadores, sem comunicações por satélite, sem Internet, e nem mesmo televisão na maioria dos lugares. A vida em outro ritmo, com outros valores.

Mais alguns segundos e a máquina do tempo avançaria mais um ano. Chegaria ao ano do meu nascimento e eu poderia acompanhar, em seguida, ano a ano, meu desenvolvimento, minha história até hoje.

Então, a máquina do tempo avançou e eu tive um choque!!

Ela passou de 1959 para o ano 2000, o ano em que estamos. Levei algum tempo (tudo bem, uma fração de segundo) para sacudir minha fantasia e descobrir o defeito em minha máquina do tempo. Afinal, era apenas um relógio digital e os relógios costumam mesmo passar de 19h59min para 20h00min... e o relógio não mostrou 1960, como eu queria, o ano em que nasci.

Minha recém criada máquina do tempo pulou, em seu defeito, exatamente a minha vida inteira, até aqui. Foi como se estivesse programada para esconder de mim a minha própria vida.

Engenheiro que sou, fiquei pensando nas possíveis causas do defeito. E nas conseqüências.

Imaginei que talvez a máquina não estivesse defeituosa, mas que aquele intervalo de tempo realmente não tivesse existido. O calendário teria saltado de 1959 para 2000. Neste caso, se eu estivesse aqui, teria surgido do nada, já adulto, com quarenta anos de idade, mas sem passado.

Como poderia ser uma coisa dessas? E todas as coisas que experimentei e aprendi, nesse tempo? E as coisas que planejei e construí? Meu casamento, meus filhos, minha casa. Meus amigos, meu trabalho, minhas crenças. Este novo eu que surgiria vazio, “tabula rasa”, em 2000, teria que começar tudo do começo, de novo. Que coisa absurda!

Entretanto, depois pensei no quanto essa falha na máquina do tempo não fosse assim tão falha. O quanto de verdade não havia naquele salto...

Aos quarenta, ou quase, de certa forma estou mesmo recomeçando muita coisa a partir do zero, ou quase: casamento desfeito, filhos afastados e a vida totalmente redesenhada. Novos amigos, novas rotinas e ambientes diferentes. Estou tendo que reaprender tudo, reavaliar cada crença, cada valor. Tem horas que tenho a nítida impressão de que tudo que fiz até hoje foi jogado no lixo, foi inútil, inválido. Fico desesperado nesses momentos, quando tenho a sensação de que a tarefa de reconstruir tudo é impossível. Ninguém conseguiria.

Só resta chorar e, enquanto choro, mil pensamentos confusos passam por minha mente, trazendo imagens que se sobrepõe numa velocidade estonteante, borradas de lágrimas. Dizem que o único remédio é o tempo, mas o tempo goteja em doses homeopáticas quando mais se deseja que jorrasse rápido nas veias, como um anestésico.

Oito e dez. Só agora olho para o relógio novamente. Ele marca 2010 e eu começo a imaginar minha vida daqui a dez anos.. Terei cinqüenta, ou quase. Onde estarei? Onde estarão meus filhos? É possível que eu seja avô, então...

Embarquei na máquina do tempo novamente, agora no futuro, e fiquei olhando as coisas pela janela imaginária. Tanta coisa possível de ser feita, tantos sonhos ainda por realizar, tanto para viver, para amar, que nem vi passar mais dez minutos, totalmente enlevado por uma coisa que poderia ser chamada saudade do futuro.

E a máquina do tempo já marcava 2020, mas eu fechei os olhos e voltei para meu presente, ano 2000.

Voltei para me dar conta de que não estou começando do zero, pois embora a vida dê voltas inesperadas, às vezes quase inaceitáveis, a história da gente continua sendo escrita. Me dei conta de que os sonhos e planos só existem porque existiu um passado. A máquina do tempo verdadeira não dá saltos, não elimina trechos de nossas vidas.

O relógio funcionando como uma máquina do tempo estragada fez a história ignorar um período da minha vida e me fez lembrar de um filme que dizia que hoje é apenas o primeiro dia do resto da minha vida. Entendi que o tempo que cura não é o passado, mas apenas o que ainda está por vir. E, de repente, eu estou feliz novamente, fazendo planos, criando futuros.

Quase nove! Faz uma hora que estou divagando e já passei por momentos de choro e de alegria, ainda bem que nessa ordem.

Vinte e cinqüenta e nove. Se estiver vivo, terei quase cem anos em 2059. A máquina do tempo vai pular mais quarenta anos daqui a pouco.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito Bom...!!!