12 de outubro de 2006
A Revolução Esquecida
imagem: Eugene Delacroix - La liberté guidant le peuple (wikipedia.com)
(escrito em 1983)
A primeira fagulha da revolução se acendeu quando Hilda descobriu que não tinha ídolos. Pensando bem, o que são ídolos? O que são ídolos?! São pessoas que têm fãs. Pessoas famosas. Não, não é só isso. Pensando melhor, talvez eu não tenha ídolos porque nem sei o que é um.
Ídolo é... tem coisa que não é fácil definir!
Ser ídolo é... ter dinheiro, ter a camisa rasgada pelas pessoas, uma casa com piscina, usar óculos escuros, aparecer na televisão.
É? Não, não é! Não é, porque o ídolo da gente pode ser pobre, como... Gandhi. É! Um ídolo é um cara justo, batalhador, com idéias revolucionárias, com carisma, um líder.
Hilda virou-se na cama. Estava sozinha no quarto. Nas paredes, havia muitos cartazes e recortes de revistas com cantores e atores de novela. Eih! Vocês todos aí! To querendo saber o que é que vocês são!
Já tive várias fases: Tarcísio, Zico, Frampton, Travolta e assim vai... Na realidade, eu era fã e eles eram meus ídolos, mas nunca parei para pensar sobre essa relação.
A gente gosta deles, mas não sabe realmente o que eles são. A gente gosta da casca.
Já sei!
Ela se levantou e foi até a mesa que havia no quarto. Afastou alguns cadernos, procurou numa gaveta e noutra até que achou: um dicionário.
“Ídolo: estátua ou objeto adorado como um deus.”
É mesmo! Tem gente que adora ídolos, ou adorava. Lembro daquela história do bezerro de ouro, do Noé. Não, acho que era do Moisés. Ah, isso não vem ao caso mesmo...
“(fig.) pessoa a quem se tributa demasiado respeito ou excessivo afeto.”
Taí! É esse ídolo que eu queria! É isso mesmo: o Gandhi é um ídolo por respeito. Um cantor é por afeto.
Hilda largou o dicionário na mesa e voltou para a cama. Deitou-se e ficou olhando para o teto.
Mas por que a gente tem ídolos que não conhece direito? A gente admira o que eles representam. É como se a gente os tivesse como modelos ideais do que gostaríamos de ser. A gente se projeta neles e persegue um ideal de ser tão forte, tão bonita, tão inteligente ou famosa quanto eles.
Mas agora estou com vontade de jogar todos no lixo. Todas essas pessoas que já amei, agora não significam coisa alguma. Por quê? Porque de repente já não quero ser famosa ou rica. Ser feliz é objetivo maior. Amar e ser amada. Ser uma pessoa comum me parece uma coisa maravilhosa.
É claro que o Alfredo tem muito a ver com essa guinada no meu modo de pensar. De repente, eu saquei que não quero mais nada a não ser me sentir segura, feliz e ser uma pessoa comum ao lado dele, é lógico. Pensou, então, em tirar todas aquelas fotos da parede e colocar uma foto só, do Alfredo.
Mas então o Alfredo é o meu ídolo? Não! Acho bom não confundir esses dois afetos.
Mas, se o Alfredo não era seu ídolo, então, ela realmente já não tinha ídolos. Mas Hilda adorava ter explicação para tudo.
Não tenho ídolos porque não conheço ninguém em quem eu possa me projetar e dizer: “eu queria ter sido essa ou aquela pessoa” ou “eu gostaria de estar ao lado daquela outra”. Por um lado, porque a sociedade me deixa de tal forma perdida e sem opções, que o único ideal passa a ser o de sobreviver. Não dá tempo de sonhar. Por outro lado, mesmo que eu tivesse tempo para sonhar, eu não acharia um ídolo que refletisse valores em que acredito. Se alguns pregam esses valores, pode crer que é em proveito próprio, no fundo.
“Hoje eu sei que quem me deu a idéia de uma nova consciência e juventude ta em casa, guardado por deus, contando o vil metal.” É isso aí, Belchior!
Não dá para ter verdadeiros ídolos porque a sociedade é baseada em valores equivocados, em corrupção. A gente admira um rico, com carros e piscinas, mesmo sabendo que talvez ele tenha pisado em muita gente para chegar nesse ponto. Mesmo assim a gente acha legal e sonha em poder viver dessa forma, algum dia.
Os valores são equivocados!
Ontem, no cursinho, falaram da revolução francesa: “liberdade, igualdade e fraternidade”. É, se essa revolução tivesse realmente mudado as coisas, teríamos um mundo legal, mas hoje há tanta desigualdade, tanta tirania quanto naquele tempo.
Estranho... se houver liberdade em todos os sentidos, fatalmente surgirão desigualdades, pois as pessoas evoluem diferentemente. Por outro lado, se se forçar uma igualdade, então não haverá liberdade. Uma tende a anular a outra.
O mundo está dividido em duas partes: uma que preferiu a liberdade e outra que tenta construir a igualdade.
Já a fraternidade... talvez seja esta a terceira força no mundo: a religião, que tenta implantar uma sociedade fraternal onde a liberdade e a igualdade ficariam em segundo plano.
Quer dizer que a grande revolução já foi baseada numa tríade de conceitos conflitantes entre si. Isso nunca ia resolver nada mesmo! Que merda!
É preciso outra revolução, com outros conceitos!
Para combater a hipocrisia, a falsidade que impera por aí, uma dos conceitos deveria ser a Verdade.
Liberdade. Isso é indiscutível.
Entretanto, para que essa liberdade não gere diferenças brutais e para que os vários níveis sociais surgissem honestamente, sem sujeira, seria necessária Justiça.
Essa seria uma tríade bem melhor: Liberdade, Justiça e Verdade.
Puxa, seria muito bom conversar sobre isso com o Alfredo... Ele já estava atrasado.
O único jeito talvez fosse explodir tudo e confiar que quem sobrasse vivo começaria tudo de novo, só que sem cometer os mesmos erros. Talvez ainda apareça um louco que aperte o botão, só para ver o que acontece. Na maior das boas intenções para com a humanidade.
O pior é que as pessoas estão cada dia mais alienadas, apesar de estarem cada vez mais bem informadas. Parece que isso vai entorpecendo a gente. Se acontecesse uma maldade ou desgraça de vez em quando, a gente ia lá e lutava contra, tentava consertar. Mas a gente liga a televisão e vê tanta coisa ruim que qualquer Hércules desistiria de tentar lutar contra.
Informação gera alienação! Essa é boa! É a pior alienação possível: uma alienação consciente, por opção.
Era preciso que as pessoas lutassem mais pelas coisas em que acreditam, mas parece que elas crescem, amadurecem e se conformam com o mundo do jeito que ele é.
“O mundo não é para entender; é para decorar!”
Essa é uma frase detestável, mas está certa. A gente não gosta porque ela nos joga na cara a nossa impotência.
Hilda já estava bastante deprimida. Tudo isso em que pensava a fazia sentir-se cada vez menor e perdida no mundo. Ela pensou, então, em começar a agir mais ativamente: sair de casa, tinha que ser o primeiro passo. Seu pai e mesmo sua mãe nunca aceitariam que sua filhinha participasse ativamente de coisas desse tipo. Apesar de fazerem questão de que ela estudasse para que alargasse seus horizontes, já tinham traçado para ela um destino de dona de casa. Isso era mais uma coisa que a revoltava e que precisava ser mudada! Era preciso batalhar pela igualdade de direitos, pelo amor livre, pela destruição de um monte de tabus.
Subitamente, a porta do seu quarto se abriu e sua mãe pôs a cabeça para dentro:
“O Alfredo está aí, filha!”
Hilda, ainda meio sobressaltada por ter sido tirada de seus pensamentos, esqueceu tudo e foi correndo encontrar o rapaz.
Alfredo estava na sala e, depois de um “oi” e de um beijinho discreto, os dois se sentaram lado a lado no sofá e assistiram comportadamente a um show do Roberto na televisão.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário