13 de abril de 2017

O Crucifixo Contra o Ovo da Páscoa




Para a maioria das pessoas, o feriadão da páscoa vai passar batido, apenas como mais uma oportunidade de descansar. As tradições e o significado são ignorados ou aceitos sem discussão.

A páscoa moderna tem uma enorme contradição: o choque grotesco entre uma celebração secular da felicidade e um culto religioso ao sofrimento.


A parte agradável da páscoa é o seu lado secular, o lado relacionado ao coelho e aos ovos. Só que essas tradições não têm nada a ver como cristianismo. Na verdade, são anteriores ao cristianismo. A própria palavra easter (páscoa em inglês) vem do nome anglo-saxão de uma deusa que personificava a primavera. A palavra páscoa vem do hebraico pesach, também relacionada a uma celebração do retorno da primavera. Estas festividades eram realizadas por pastores nômades desde antes de Moisés.


Foi dessas celebrações pré-cristãs que vieram o coelho e o ovo da páscoa. O coelho simboliza a fertilidade com sua capacidade de reprodução rápida e numerosa; o ovo é um símbolo natural de nova vida; as cores e marcas brilhantes com que os ovos eram adornados representavam a luminosidade da primavera se contrapondo ao inverno de noites longas e dias cinzentos. A páscoa original era um rito pagão, ligado à natureza, comemorando o retorno do calor e da luz solar, das folhas verdes após um longo inverno. Era a celebração da alegria de viver, de ter sobrevivido, do recomeço da vida, da possibilidade de plantar e colher novamente.


Ao cristianismo não interessava manter uma festa pagã, relacionada a deuses e deusas antigos, bem como a uma pecaminosa celebração da vida e seus prazeres. Contudo era um costume muito arraigado, milenar. Então, ao invés de proibir a festa, os cristãos inteligentemente se apropriaram dela (assim como fizeram com o natal): mantiveram sua data, mas alteraram seu significado, enxertando nela a história da crucificação e da ressurreição de Jesus.


O problema é que cristãos e pagãos celebram coisas completamente opostas.


A essência da “páscoa” cristã não é a alegria de viver, mas a adoração ao sofrimento e ao sacrifício. De acordo com o cristianismo, somos todos pecadores e Jesus escolheu sofrer a morte lenta e agonizante de uma crucificação para redimir nossos pecados. Os santos cristãos são pessoas que também renunciaram a todos os seus interesses ou valores pessoais. Devíamos todos seguir seus exemplos.


Funciona assim:
  • Se você valoriza o que tem, o que conseguiu com seu trabalho honesto, deve se lembrar que Jesus renunciou aos bens materiais e escolheu viver na pobreza.
  • Se você tem sonhos e ambições, como uma carreira, abrir um negócio, pode parar! Esqueça seus interesses egoístas, pois veja: Jesus largou tudo que era seu e se dedicou à missão estabelecida por deus, mesmo que, num certo ponto, isso significasse morrer pela missão.
  • Se você gosta de sexo ou outros prazeres do corpo, lembre-se que Jesus rejeitava, dizem, essas tentações pecaminosas.
  • Se você está em dúvida, lembre-se que Jesus renunciou às suas dúvidas e colocou sua vida nas mãos de deus.


Para o cristianismo, são pecados todos os valores que fazem com que sua vida valha a pena ser vivida: suas posses, seu trabalho, seu corpo, sua mente independente.


Este é o verdadeiro símbolo da mensagem cristã da páscoa: não ovos e coelhos representando a alegria e a vida, mas o corpo de um homem pregado a uma cruz, vítima de um instrumento de execução precedida de longa tortura, absurdamente dolorosa, bárbara e desumana. Entretanto, aquele homem teria poder para livrar-se, mas se submeteu espontaneamente. É o símbolo supremo do sacrifício.


Seria este um símbolo de um ideal a ser seguido? O cristianismo traz consigo uma filosofia moral que nos diz para encontrar valor na destruição das coisas que valorizamos. Entretanto, só os “santos” são capazes de fazer isso. Nós, pessoas comuns, nos agarramos ao que nos mantém vivos, ao que nos dá motivos para viver, e por isso somos considerados pecadores! Prazer, sucesso, ambição e liberdade? Nada disso! Todas essas coisas estão associadas ao sentimento de culpa pelo “crime” de pensarmos em nós mesmos. Esta é a essência da moral cristã.


Que tal uma outra moral baseada na vida, na liberdade individual e na felicidade, na realização de valores, carreiras produtivas, relacionamentos românticos honestos, mentes independentes?
Vista por este prisma, a moral cristã baseada no dever e no sacrifício é simplesmente… indecente.

A páscoa está aí novamente e você pode escolher: vai olhar para o crucifixo e se recolher em pensamentos mórbidos sobre o quanto você é pecador porque falha em se sacrificar pelo interesse dos outros ou vai comemorar (e bebemorar) a vida, a realização e a felicidade representadas pelo ovo e pelo coelho?


Este texto é uma adaptação/versão do texto original de Robert W. Tracinski.

10 de janeiro de 2015

Verão em Curitiba

Moro num país tropical,
Bem suado...
Por deus!






Foto: Carla Carolina Coutinho

24 de fevereiro de 2013

Frio em fevereiro!


Fim do horário de verão!
O inverno logo pensou:
Curitiba, por que não?

31 de maio de 2011

Viagem no Tempo

Atrasado pro encontro com a mina?
Remédio ter-minal no tubo:
Inter Dois sentido anti-horário

Geraldo Boz Junior



(Para quem não é curitibano, talvez esta imagem ajude a entender. Obrigado, Marilda, pela ideia de agregar uma foto!)

9 de maio de 2010

A Propagação

Há tanta coisa que a ciência não explica...

Com este argumento na ponta da língua, muita gente conclui imediatamente que a única solução é a religião.


Certa vez, numa conversa com um amigo teísta, eu disse que explicações religiosas me pareciam fantasias e que eu mesmo seria capaz de inventar outra explicação fantasiosa totalmente diferente da religiosa. Ele me disse que eu ia sempre acabar voltando a uma idéia equivalente ao conceito de deus. 


Aceitei o desafio e o resultado está descrito a seguir.


Engana-se quem pensa que foi uma tarefa fácil. A religião é bastante consistente desde que se aceitem suas premissas baseadas em algum tipo de fé. Minha explicação também tinha que ser consistente, mas não podia conter deuses, espíritos, demônios e coisas do gênero.


Foi assim que criei a teoria da Propagação Inconsciente do Conhecimento.


Para facilitar, vou chamá-la simplesmente de Propagação daqui para frente.


As explicações da Propagação não têm fundamento científico, mas também contradizem a religião. Essa teoria, embora também negue a existência de deus e desmistifique o universo, o faz de maneira tão dogmática que poderia ser base de uma nova religião com uma lógica interna consistente, porém também irrefutável e improvável como as crenças místicas.


Vamos lá.


A primeira premissa é que o pensamento resulta unicamente de processos eletro-bioquímicos que ocorrem no cérebro e que nossa personalidade é constituída unicamente por esses pensamentos. A verdade é que não temos nossos pensamentos, mas que somos nossos pensamentos! Não há almas imortais, nem espíritos, nem nada desse gênero no universo da Propagação. 


Esta é a Premissa do Pensamento Biológico.


É evidente, contudo, que o pensamento não fica confinado ao cérebro, pois se transmite de várias formas conscientes, voluntárias e sensoriais. Quando alguém expressa suas vontades e idéias, como neste texto, está comunicando seus pensamentos a outras pessoas. Existem, entretanto, formas inconscientes de comunicação, como a linguagem corporal, por exemplo, em que, às vezes, o transmissor nem se dá conta de que uma comunicação está ocorrendo. 


Pode-se perceber que uma pessoa está impaciente ou insegura sem que essa pessoa saiba que está demonstrando isso. Pode-se sentir simpatia (ou antipatia) por alguém à primeira vista, sem que se tenha um motivo razoável para isto. Hoje se sabe que feromônios podem influenciar nossas sensações e explicam coisas que antes eram atribuídas à intuição. A linguagem corporal é uma comunicação não-sensorial. Os feromônios compõem uma comunicação literalmente extra-sensorial, se considerarmos apenas os cinco sentidos clássicos.


Muito bem, até aqui nada de extraordinário.


Agora, porém, respire fundo porque você vai conhecer a premissa mais importante da Propagação.


O pensamento também se transmite de forma telepática sem que o transmissor tenha qualquer controle consciente sobre a transmissão. O receptor também não tem controle sobre a recepção e, o mais incrível, pode receber pensamentos e simplesmente guardá-los, sem tomar consciência deles. Esta é Premissa da Comunicação Telepática Inconsciente e ela tem muitas implicações interessantes.


Imagine que eu esteja caminhando numa rua, passando por várias pessoas. Eu estou pensando numa música e, sem saber, posso estar transmitindo meus pensamentos para essas pessoas, telepaticamente. Algumas daquelas pessoas poderiam receber esse pensamento e imediatamente começar a cantarolar a mesma música.


Menos evidente e mais importante é outra implicação: uma pessoa que recebeu meu pensamento, talvez não o traga ao nível consciente imediatamente. Talvez essa pessoa só cantarolasse aquela música algumas horas depois, ou alguns dias, ou alguns anos depois. A informação foi recebida e fica guardada em algum lugar do cérebro. Algum dia, alguma coisa fará a pessoa “lembrar” dela. Bizarro? Prepare-se, pois isso é só o começo.


Ainda menos evidente, porém mais importante e mais bizarro é que o meu pensamento (aquela melodia) estará disponível na memória daquela pessoa para ser retransmitido. Dessa forma, a pessoa que recebeu meu pensamento talvez nunca venha a ter consciência dele, mas poderá retransmiti-lo a qualquer momento. Essa sequência de comunicações inconscientes permite que um pensamento original seja transmitido e retransmitido indefinidamente para uma quantidade crescente de pessoas. Depois de algum tempo, meu pensamento pode estar presente em todas as mentes do planeta. A esta cadeia de comunicações telepáticas inconscientes é que dei o nome de Propagação Inconsciente do Conhecimento.


Eu não inventei este tipo de propagação. É exatamente dessa forma que o vírus de computador se propaga. E esses programas de computador receberam o nome de vírus devido à semelhança de sua forma de propagação com a dos vírus biológicos. O pensamento telepático, assim como o vírus, se propaga por meio de portadores que não sabem que estão desempenhando esse papel.


Vamos continuar analisando o fenômeno: a Propagação pode continuar – e efetivamente continua – indefinidamente ao longo do tempo. Além de se propagar geograficamente, um pensamento gerado hoje poderá estar ainda se propagando daqui a séculos. Por outro lado, podemos ainda estar retransmitindo pensamentos gerados por trogloditas enquanto perseguiam mamutes.


Uma característica importante dessa transmissão de pensamentos é que ela não acontece por meios convencionais como ondas eletromagnéticas, luminosas ou sonoras. Seu comportamento não é explicado nem obedece a qualquer lei conhecida da física. De fato, ninguém sabe como a telepatia acontece. Não há como estudar diretamente essa comunicação, pois nenhum equipamento a detecta. Tudo que se sabe sobre ela é indireto, fruto da observação prática de seus efeitos.


Algumas perguntas podem e devem ser feitas sobre essas transmissões.
A distância física entre transmissor e receptor tem alguma influência? Talvez a telepatia só alcance alguns metros, talvez alcance outras galáxias. Não se sabe.


A afinidade psíquica entre transmissor e receptor tem alguma influência? Não se sabe ao certo, mas talvez haja mais comunicação entre pessoas com idéias semelhantes, mesma formação, mesmas vontades.


Há alguma relação com a proximidade genética entre as pessoas? Este fator pode indicar mais compatibilidade entre os ‘equipamentos’ de transmissão e recepção, ou seja, os cérebros. Isto pode facilitar a comunicação entre irmãos gêmeos e parentes próximos.


Pode haver fatores externos que facilitem ou dificultem a comunicação? Manchas solares, as fases da lua, o signo ascendente, a proximidade de pessoas com sentimentos negativos, falta de vitamina B12, etc. Como não se pode levar a cabo um experimento, qualquer dessas alternativas é igualmente provável...


Mas não é só isso! Por apenas um centavo a mais de imaginação, a Propagação fica infinitamente mais complexa e interessante!


Vejam bem: como a natureza da transmissão do pensamento é totalmente desconhecida, pode-se especular sobre sua propagação no tempo. Apresento então a terceira premissa: eventualmente o pensamento se propaga para o passado! Isso significa que é possível recebermos hoje pensamentos que só serão gerados daqui a vários anos. Um pensamento gerado hoje pode ser recebido no século passado. Esta é a Premissa da Propagação para o Passado. Pura especulação, mas vai servir aos propósitos de abrangência desta teoria, como veremos mais adiante.


Há muitas outras questões interessantes.


Somente seres humanos geram e recebem pensamentos? Há comunicação entre espécies diferentes, cães e pessoas, por exemplo?


Somente memórias de fatos reais são transmitidas ou situações imaginárias são igualmente comunicáveis? Neste caso, será que o receptor pode discernir entre memórias de fatos reais e puras fantasias?


A coisa está ficando complexa, não? Vai ficar mais ainda!


O que pode ser transmitido? Apenas impressões sensoriais como melodias, perfumes,  imagens e sabores(!) ou também emoções e vontades? E conceitos como liberdade individual e modelos atômicos? E habilidades, como nadar ou tocar piano? Não seria igualmente transmissível a personalidade completa de alguém (suas memórias, suas emoções, sua identidade, tudo)? Alguém que recebesse uma comunicação telepática desse tipo poderia não apenas cantar a música que o transmissor estava pensando, mas lembrar de tudo que a pessoa lembrava, agir como ela agia e até pensar que efetivamente é aquela pessoa... Isso tem implicações fantásticas!


Uma mensagem telepática pode ser distorcida de alguma maneira? Lembranças parciais ou compreensão precária do que se transmite podem levar a deturpações sucessivas, semelhantes a uma brincadeira de telefone-sem-fio. 
As imagens vistas e transmitidas por um daltônico, por exemplo, talvez sejam transmitidas com deturpações desde sua fonte. O que é retransmitido por um leigo que recebe um pensamento vindo de um especialista em química?


Há alguma seletividade do conteúdo das transmissões? Alguém com fome tende a transmitir pensamentos sobre comida? Se alguém focaliza seus pensamentos em outra pessoa pode lhe dirigir suas transmissões telepáticas?
Já temos perguntas suficientes. Dependendo das respostas, muitos mistérios podem ser explicados:


·      A telepatia propriamente dita é um mistério que está não só admitido, mas é a premissa básica de toda essa teoria.


·      Algumas pessoas podem ter capacidades anormalmente grandes de captar pensamentos. Uma cartomante, por exemplo, poder captar pensamentos transmitidos inconscientemente por seus clientes. A cartomante acredita que suas visões e adivinhações são proporcionadas por um guia espiritual qualquer. Na verdade, enquanto ela olha as cartas ou a palma da mão de um cliente, está recebendo seus pensamentos telepáticos e isso permite a ela falar sobre medos e sonhos dele. Claro, ela também pode receber pensamentos vindos do futuro do próprio cliente. Pronto! Todo o mistério da cartomancia está explicado! A explicação dada pela Propagação é tão boa quanto à sobrenatural e não apela a nenhuma entidade sobrenatural.


·      O déjà-vu acontece quando se vê alguma coisa pela primeira vez e se tem a forte impressão de já tê-la visto antes. Para o espiritismo, a pessoa teria conhecido essa coisa numa encarnação passada. A Propagação tem outra explicação: a pessoa recebeu a lembrança de alguém que realmente presenciou a tal coisa em algum momento do passado. De lá até hoje, pode ter havido muitos intermediários no caminho dessa lembrança. A lembrança que estava na memória da primeira pessoa viajou por muitos portadores e ao longo de muito tempo até ser identificada. É importante notar que, segundo essa explicação, não é necessário recorrer a almas, nem reencarnação para explicar o fenômeno. Basta a Propagação e sempre entre pessoas vivas.


·      Através da hipnose, muitos afirmam conseguir ativar um processo de regressão, pelo qual o paciente volta às lembranças de sua juventude, ou até mesmo... de suas encarnações anteriores. A Propagação explica de forma diferente: a hipnose faz aflorar informações latentes no cérebro do hipnotizado. Lá estão memórias e até personalidades completas que se originaram muitos séculos antes e que se transmitiram telepaticamente até os dias atuais. A regressão é, na verdade, o acesso a memórias que não são da pessoa hipnotizada, mas memórias alheias e que chegaram ali pela Propagação. Novamente, não há deuses, nem almas na explicação dada pela Propagação.


·      A mediunidade é outro equívoco de interpretação da realidade. O médium espírita não encarna almas desencarnadas, mas apenas dá voz a cópias de personalidades que se propagam para sua mente. O médium é alguém com uma capacidade anormalmente grande de captar comunicações telepáticas contendo personalidades. Médiuns “incorporando” artistas podem pintar e escrever como eles porque as habilidades também se propagam. O termo “incorporar” nem está incorreto, pois o médium realmente vive outra personalidade... Entretanto, na explicação da Propagação, não existem almas nem comunicação com os mortos, mas apenas informações telepáticas transmitidas sempre entre pessoas vivas.


·      Uma variante da mediunidade é a loucura. Se alguém é capaz de captar pensamentos contendo personalidades, eventualmente se transforma num médium, mas, dependendo da pessoa também pode simplesmente reconhecer essa personalidade como uma inspiração para um novo personagem, ou talvez como um acesso de loucura, como dupla personalidade, como possessão demoníaca ou como uma comunicação de extraterrestres. Tudo não passaria de telepatia, de Propagação. As variações de pessoa para pessoa determinam se o processo cria um grande médium ou um “napoleão” de hospício.


·      As chamadas viagens astrais são outro caso em que a Propagação traz novas luzes à realidade. Entende-se por viagem astral o desprendimento da consciência em relação ao físico, ou seja, uma pessoa pode estar sentada em seu quarto enquanto sua consciência viaja livremente para outros locais. Há muita gente que afirma poder fazer tal coisa e há multidões intermináveis que compram seus livros na esperança de repetir suas façanhas. Para a Propagação, podem ser “viagens” através de memórias adquiridas involuntariamente ou, já que se admite a telepatia, podem ser a “viagem” até a mente de outras pessoas e a captação de suas sensações no momento em que estão acontecendo. Apesar de toda a improbabilidade dessas explicações, todas seriam condizentes com a Premissa do Pensamento Biológico. As explicações da Propagação jamais requerem que se acredite em individualidades desencarnadas.


·      A visão do futuro ou premonição é outro fenômeno misterioso que se explica facilmente com a Propagação. Alguém no futuro presencia um acontecimento e aquele pensamento se propaga para trás no tempo devido a alguma condição inexplicada. Imagine alguém na idade média recebendo lembranças de alguém da nossa época, com aviões, computadores, bombas atômicas. Esse cidadão medieval certamente tenta encaixar essas visões dentro do que ele conhece e admite. Quando ele comentar o que viu, certamente vai acrescentar anjos e milagres na narrativa. Novamente, a Propagação explica tudo sem recorrer a qualquer elemento sobrenatural.


·      E o poder das orações? A prece talvez seja uma forma de canalizar a transmissão telepática. O pensamento transmitido pode influir nas decisões de quem os recebe. Essas decisões podem afetar favoravelmente a vida do transmissor, ou seja, quem rezou. Portanto, rezar eventualmente pode funcionar, mas a explicação não inclui nenhum deus ouvindo preces e fazendo intervenções no universo segundo pedidos de suas criaturas. É só Propagação. É só o relacionamento telepático entre pessoas comuns e vivas.


·      Curas místicas têm relação íntima com o poder das orações. Admitindo-se que essas curas realmente existam, a Propagação as explica estendendo um pouco mais seu próprio alcance. Basta agregar ao conjunto mais uma premissa, agora supondo que o pensamento pode atuar no mundo físico. Esta é a Premissa da Atuação Física da Telepatia. Além de explicar as curas místicas, isto também explicaria outros mistérios como a telecinésia (movimentar objetos com a força do pensamento), aparições de fantasmas e de discos-voadores. A Propagação explica todas essas coisas sem recorrer a entidades sobrenaturais, nem outras dimensões, nem vida além da morte, nem deuses. Ah, desculpe pela repetição, mas isso é importante...


·      Mais uma reinterpretação: deus. O que as pessoas chamam de deus é apenas uma versão telepática do Inconsciente Coletivo de Jung. Por ser telepático, esse coletivo tem realmente algumas qualidades de deus, como a onipresença e a onisciência. Sendo apenas o somatório de consciências humanas (e, quem sabe, não-humanas também), não seria de estranhar que esse deus tivesse mesmo características humanas como ser vingativo, raivoso, e se achar o tal, o máximo. Entretanto, esse deus somatório não tem personalidade própria, não tem propósitos, não oferece ajudas nem ameaças.


·      A Propagação também oferece explicação para a criação do universo. Basta extrapolar a teoria, como sempre. Se estamos evoluindo ao longo de milhões de anos, o inconsciente coletivo telepático também está evoluindo. Num futuro distante, talvez daqui a bilhões de anos, o cérebro humano terá atingido tal ponto de evolução que a telepatia deixará de ser inconsciente e se tornará o meio usual de comunicação entre as pessoas. Nesta altura, o universo estará morrendo, as estrelas se apagando, mas o inconsciente coletivo estará tão desenvolvido que é impossível imaginar todas as suas potencialidades. A junção telepática de todas as mentes do universo será uma entidade tão poderosa que lhe será possível recriar o Big Bang. Entretanto, o processo exterminaria a vida, as mentes e consequentemente o próprio inconsciente coletivo telepático resultante delas. Deus morrerá ao criar um novo universo. Seu sacrifício, entretanto, fará história recomeçar. Bonito não?


A bizarria já está se tornando alucinada, mas se a religião pode, porque a Propagação não pode?


Serão necessários outros bilhões de anos para a formação de planetas, a criação da vida, o surgimento da inteligência, da telepatia e de um novo deus ou inconsciente coletivo telepático. Esta teoria compatibilizaria as tradições ocidentais e orientais a respeito da cosmogênese. O universo realmente tem um começo e um final, como é comum se acreditar no ocidente. Entretanto, os infinitos reinícios estão de acordo com as tradições orientais sobre a história cíclica do universo. O inconsciente coletivo é a soma das inteligências do universo. Esse deus seria o deus panteísta, um deus-consequência. No que diz respeito à próxima recriação do universo, entretanto, esse inconsciente coletivo é o criador, o deus-causa, a causa primária. Enfim, é uma explicação para agradar crentes e ateus, orientais e ocidentais, gregos e troianos. Eu me senti um gênio quando percebi essas possibilidades!


Muita fantasia? Bom, a Propagação modela um mundo essencialmente probabilístico, com acontecimentos se sucedendo de forma aleatória, casual. Não admite um deus regendo destinos. Albert Einstein, aparentemente acreditava em um deus que determinasse o movimento de cada partícula do universo, pois certa vez declarou que “deus não joga dados”. Ele dedicou muito de sua vida para descobrir regras determinísticas na física. Einstein não convivia bem com a mecânica quântica, pois esta é essencialmente probabilística. Stephen Hawking, o físico mais famoso de nossos dias, inspirado na física quântica, contradisse Einstein, dizendo que “deus não apenas joga dados, mas o faz até mesmo onde menos se espera”. A esse respeito, Mário Schenberg, físico brasileiro em seu livro “Pensando a Física” (Editora Landy), diz que “Einstein parecia se opor ao probabilismo essencial da teoria quântica porque estava convicto de que ela conduziria a fenômenos do tipo telepático”. Será que a Propagação Inconsciente do Conhecimento é só uma fantasia?


Uma última consideração: a Propagação pode ser usada para fundamentar uma religião? Ocorre que embora a ela ofereça boas explicações, também tem características que a desqualificam como base para uma religião: primeiro, a Propagação não é povoada por seres sobrenaturais e não dá a oportunidade de se criarem sacerdotes para intermediar a comunicação entre deuses e mortais. Outro problema da Propagação é que ela não oferece o consolo de uma vida pós-morte nem um sentido para a vida. Um terceiro problema é que a Propagação não impõe padrões de comportamento. Portanto, uma possível Igreja da Propagação não teria deuses, nem sacerdotes, nem consolo para o sofrimento e a morte, nem mandamentos divinos para seus fieis...


Afinal, como eu queria demonstrar, produzi uma explicação diferente para os mistérios que a ciência não explica. Mostrei que a explicação religiosa não é a única possível. Se não é preciso prová-las, podem-se criar outras explicações à vontade, tão boas quanto a religião, tão absurdas quanto ela. Abraçar a religião para explicar coisas que a ciência não explica é tão ruim quanto adotar as explicações da Propagação. Não há motivo para adotar nem uma nem outra. Por outro lado, se você quer uma religião para ter uma orientação sobre o bem e o mal, então é melhor ir direto à fonte e estudar filosofia. Filosofias humanistas podem lhe oferecer um norte ético sem lhe impor desnecessárias crenças no sobrenatural.


Propague a Propagação! :-)


Geraldo Boz Junior
gbozjr@gmail.com

6 de abril de 2010

A Cabana do Fim da Humanidade

A Cabana do Fim da Humanidade
Geraldo Boz Junior

Você leu “A Cabana”? Se ainda não leu, mas pretende ler, aviso que esta crítica pode, no mínimo, estragar algumas surpresas da leitura.

Se você leu e gostou, este texto vai revisitar algumas passagens impressionantes que talvez lhe abram os olhos para coisas que você leu, mas não percebeu em “A Cabana”.

Esse livro contém o tipo da leitura cativante (embora muitas vezes difícil), que prende pelo mistério, pelo suspense e pelas cenas insólitas nas quais o protagonista toma café da manhã conversando com deus à mesa (eu grafo deus com minúscula mesmo, certo?), caminha ao lado de Jesus sobre as águas de um lindo lago, passeia por bosques ajudando o espírito santo a colher flores. Encantador, não? Devem ser situações que deixam crentes sonhando acordados.

Como ficção o livro tem seu valor. O problema são as idéias transmitidas pelos deuses. Em meio à sedução de passagens encantadoras, o autor desconstroi a humanidade. É um livro absurdamente maléfico e vou mostrar por que no texto a seguir.

Estamos em abril de 2010 e este livro de William P. Young está encabeçando a lista dos mais vendidos no Brasil, na categoria ficção. Já na contracapa se lê uma prévia da história: Mack, o protagonista, recebe um bilhete em sua caixa de correio. O bilhete tinha sido deixado lá por ninguém menos que deus. Era um convite para que Mack fosse encontrar deus numa cabana nas montanhas. Obviamente Mack vai e obviamente encontra deus. Aí ocorre a desconstrução da humanidade.

Não vou questionar, no restante desta crítica, o criacionismo presente no livro de Young. Apenas deixo registrado que ele trata Adão e Eva e o Jardim do Éden como verdades históricas, o que interpretei como direito dele, pois afinal trata-se de um livro de ficção... O foco da minha crítica não é a existência ou não dos personagens e dos fatos relatados, mas a filosofia embutida em suas falas. As pessoas podem até perceber a história como fantasiosa, mas, mesmo assim, tomam como grandes lições o que os personagens falam. Eis aí o perigo!

Para começar, um detalhe interessante: deus se mostra a Mack na forma de uma mulher negra e gorda, que adora pilotar um fogão fazendo comidas deliciosas. Enquanto cozinha, canta e rebola ao som de música funk que ouve num fone de ouvido. Num toque de ficção-científica, deus diz a Mack que a música é do futuro, pois afinal ela (ele?) conhece tudo, passado, presente e futuro.

Quando Mack pergunta a deus por que ele aparece no formato de uma mulher negra e gorda, ela responde que sua natureza não é nem masculina nem feminina e que escolhe aparecer desta ou daquela forma segundo os propósitos do momento. A idéia era quebrar algumas idéias preconcebidas de Mack , que provavelmente imaginava deus como um velhinho com longas barbas brancas. O detalhe interessante é que Mack não perguntou a deus porque ela não apareceu como um gay. Seria bem apropriado para um ente que não é nem masculino nem feminino, não? Ocorre que o autor queria vender livros e provavelmente um detalhe como esse causaria um boicote dos leitores e não um sucesso de vendas. Inteligência editorial! Vamos quebrar ideias preconcebidas, mas só até o ponto que nos interessa, ok? Todo o resto do livro (como toda discussão religiosa) é sempre assim. Vamos discutir, mas só até certo ponto. Quando as perguntas começam a ficar realmente boas, então "você não pode querer entender as razões de deus...".

Num determinado ponto do livro, Mack lembra de como contava histórias para sua filha, num acampamento. A história falava de uma tribo que habitava aquela região onde estavam acampados e de uma situação na qual os índios começaram a morrer misteriosamente. O pajé diagnosticou que o grande-espírito pararia as mortes se uma virgem se jogasse de um penhasco. Os índios não aceitaram o sacrifício, mas finalmente uma jovem se jogou voluntariamente e as mortes pararam. A filha de Mack perguntou por que o grande-espírito era tão ruim e porque a indiazinha teve que morrer. Mack respondeu, pasmem, que o grande-espírito não era mau, que fazia tudo por amor e que a moça não teve que morrer, mas escolheu morrer para salvar seu noivo da doença que estava matando os índios. Uma lição de altruísmo da virgem e de amor divino!

Vou contar a mesma história, mas vou mudar os personagens: soldados nazistas estavam matando prisioneiros do campo de concentração. Matavam alguns toda noite, aleatoriamente, em função de apostas no jogo de cartas que os divertia. Os prisioneiros reclamaram ao comandante do campo e este ficou surpreso, pois não sabia das mortes. Decretou então que ordenaria que seus soldados parassem com a matança com a condição que uma criança prisioneira se suicidasse na frente dele. Os prisioneiros não aceitaram, claro. As mortes continuaram até que uma criança escapou da vigilância dos pais e se suicidou na frente do comandante. Então as mortes pararam. E Mack teria dito à sua filha que o comandante era puro amor, que só queria o bem dos prisioneiros. Teria dito que criança não precisava morrer, mas que escolheu morrer por amor à sua família que seria morta caso ela não se matasse. Uma lição de altruísmo da criança e de amor nazista!

A história é a mesma! Uma horrível história de terror, de arrepiar! Quando tem um personagem divino, entretanto, ela se transforma em historinha de ninar. Se o comandante for um fantasma divino, é uma prova de amor, se for um coronel nazista, é prova da insanidade do poder. Histórias dessa natureza, de puro terror, são contadas para as crianças o tempo todo como se contivessem lições de moral. É a mesma historinha da crucificação de Jesus, que escolheu morrer para nos salvar. Ninguém sabe direito do quê ele nos salvou, mas dizem que o coronel divino nos poupou ou vai nos poupar de muito sofrimento por causa daquela crucificação voluntária. Mack quer que sua filha entenda que a ação de deus é motivada por um sublime amor, mas certamente diria a ela que o ato do coronel nazista foi maldade pura. Não dá para entender a diferença entre as situações? Não é para entender, é para decorar. O coronel é mau, deus é bom, ponto final. Mesmo que deus torture alguém durante longos anos com uma doença incurável, é tudo pelo bem, é tudo por amor. Decorou?

Voltemos à cabana. Mack pergunta a deus se ela se zanga com os homens. “Ora, claro, fico zangada como qualquer pai fica zangado com o filho às vezes, devido a decisões erradas que tomam. Isso não quer dizer que ame menos meus filhos, blábláblá”. Mack se satisfaz e se maravilha com a resposta, sem perguntar a deus com o quê ele poderia se zangar, uma vez que já conhece o futuro. Convém relembrar que ele estava ouvindo música do futuro! Ocorre que se o futuro já é conhecido, então não há livre arbítrio. Qualquer decisão que tomemos já está escrita em algum livro divino. E se não temos opções, por que deus se zangaria com o único rumo possível para a história (e que ele já conhece de antemão)? Não faz sentido. E daí? O importante é que deus fica zangado, mas nos perdoa porque nos ama. Vamos abordar a questão do perdão mais adiante. Em algumas ocasiões do livro, deus diz que sua criação degringolou naquele momento que Adão comeu a maçã no paraíso. Diz que os homens tomaram um rumo de liberdade que não era o certo, não era o que deus queria (aliás agora o grande objetivo de deus é nos fazer voltar aos trilhos). Pois bem. Ele conhecia, desde o início, a história toda até o fim. Sabia, antes mesmo de criar o homem, que ele tomaria decisões erradas. Esse deus também já sabe que no final vamos voltar aos seus braços ou que vamos nos danar no inferno. Então por que toda essa encenação de salvação? Em certo momento do livro, deus afirma: “criamos vocês para compartilhar nosso amor e outras maravilhas, mas Adão optou por ficar sozinho – como já sabíamos que ia acontecer – e estragou tudo”. Mas, meu deus! (desculpem, não resisti !) Se deus criou o homem para determinado fim, se deus é onipotente e se deus já conhecia o futuro, como poderia ter errado a mão e criado uma criatura que faz tudo errado, que estraga tudo? Nada faz sentido.

Nada faz sentido! Mack fala isso, ou coisas equivalentes diversas vezes durante o livro. As respostas de deus para esses pedidos de socorro da razão humana são sempre evasivas. Você ainda não tem como entender isso... Você ainda não está pronto... Isso está muito além do que você poderia entender... O deus de Mack é assim mesmo. Quer que Mack entenda algumas coisas e não quer que entenda outras. "A única coisa que importa são duas: a primeira, a segunda e a terceira". As explicações de deus são claras assim. Como um deus pode ser três? Por que não são quatro ou trinta e sete? Agora estamos falando da desconstrução da humanidade. Possuir uma mente racional é o maior fator distintivo do ser humano em relação a outros animais. A racionalidade nos tirou das cavernas e permite que você leia este texto numa tela de computador. Quando se afirma que o verdadeiro valor está em coisas sem sentido, que a racionalidade deve ser deixada de lado em prol de um amor divino, o que se está fazendo, no fundo, é pedindo que a pessoa abdique de sua condição de ser humano, de ser racional.

O deus-mulher-negra-gorda diz a Mack que a natureza do homem é ser amado e que a natureza de deus é amar. Diz que deus não pode agir exceto por amor. Em outras ocasiões, entretanto, deus reafirma o que todo mundo já sabe: deus pode tudo. Bom... pode tudo ou só pode agir por amor? Talvez... bem, talvez ele possa tudo, inclusive não poder alguma coisa... Não entendeu? Bom, isso já está virando rotina, não? Não é mesmo para entender, é para amar.

Falando em amar, tem uma hora que Mack pergunta a deus o que é o amor. A resposta de deus é super esclarecedora: o amor é o que é. Nesse ponto o autor foi muito esperto e você logo vai entender o porquê. (Ah, você ainda não está preparado para entender, mas vou prepará-lo nos próximos parágrafos. Já estou quase falando como deus).

O ponto culminante dessa escalada contra a humanidade é a cena na qual deus revela que o incidente que “rasgou o tecido do universo” foi o fato de sua criação ter decidido comer da árvore do conhecimento (de novo a historinha da maçã no paraíso). Desculpem-me o termo, mas essa foi A cagada. Quando o homem decidiu que queria ter juízo próprio, queria decidir por si só o que considera bom e mau, nesse ponto ele se afastou de seu criador. E qual é a solução, perguntou Mack? Caro leitor, por favor, sente-se porque a resposta de deus é terrível: “vocês devem desistir do seu direito de decidir o que é bom e o que é ruim e viver apenas em mim”. É a punhalada mais forte e explícita que este livro dá na humanidade. Sem uma moralidade, uma mente racional se transforma num robô. Mas afinal, esse deus não nos quer sequer racionais. Quer que somente o amemos. Quer apenas mentes... emocionais. Então voltemos à pergunta de Mack: o que é o amor? E a resposta vazia: o amor é o que é. Portanto, devemos abandonar tudo, racionalidade, moralidade e apenas amar, sem saber o que isso significa (pois não temos racionalidade) nem querer julgar se isso é bom ou ruim (pois também devemos abdicar da moralidade).

Ocorre que o amor, como todas as outras emoções, é resultado do julgamento de nossas mentes racionais. Amamos e odiamos, sentimos atração ou repulsa em função de avaliações que fazemos. Nem sempre essas avaliações são fáceis de explicar, porque podem ser tanto resultantes de abstrações intelectuais, como o medo de ficar desempregado, como resultado de conexões neurais ancestrais que nos fazem ter medo de escuro, por exemplo. A questão principal desse argumento é que não existe amor se não houver julgamento. Amamos o que desejamos, o que admiramos, o que nos conforta, o que de alguma forma julgamos de forma favorável. Amamos o que julgamos ser bom para nós. Se abdicássemos de nosso direito de julgar o que é bom e ruim, estaríamos jogando no lixo também nossas emoções e toda essa história com sentido vago de “viver no amor de deus” simplesmente não existiria porque o amor não existiria.

O deus de A Cabana diz, numa passagem, que não quer ver o homem prisioneiro, pois o criou para ser livre, com livre-arbítrio. Bom, já comentamos o fato de livre-arbítrio ser incompatível com onisciência, especialmente se deus já sabe como é o futuro. Outra pergunta que não quer calar é a seguinte: ele nos quer livres, mas considera que rasgamos o tecido do universo quando decidimos agir por conta própria ao comer da árvore do conhecimento? Que liberdade seria essa? Liberdade para fazer e pensar qualquer coisa, desde que deus concorde? Bom, deus às vezes diz uma coisa, outras vezes diz outra coisa. E daí? Ele pode. A história humana, entretanto, mostra mais o deus que não gosta de liberdade. A liberdade costuma nos dar o ar de sua graça mais frequentemente quando deus faz o favor de se ausentar. Atualmente, por exemplo, há mais liberdade nas teocracias islâmicas ou nas democracias laicas do ocidente?

Outro golpe fatal na humanidade é desfechado quando deus afirma que a responsabilidade é um mal que destroi o amor, que acaba com os relacionamentos. Não devemos esperar nada dos outros (ou seja, não devemos julgá-los) nem criar responsabilidades nos relacionamentos. Quando você ama um amigo você não exige que ele aja como um amigo, não exige que ele se sinta responsável por agir como amigo. Bonito, não? Amor incondicional. Mas amor incondicional é uma imoralidade. As mesmas pessoas que condenam a prostituta por entregar seu corpo sem critério pregam que o amor deve ser distribuído sem critério, como se isso fosse possível, como se fizesse sentido e, o pior, como se isso fosse uma virtude. O amor é o que é: vem do nada e se distribui a qualquer um. Um amor assim não teria valor algum. Ser amado dessa forma não significaria nada.

E o perdão? O deus da cabana dá importância enorme ao perdão. Ele mesmo diz já ter perdoado tudo. A primeira pergunta é: qual é o sentido do perdão de um deus que já sabe tudo que acontecerá no futuro? Por que deveríamos ser perdoados se nossas escolhas já estão escritas no livro da história antes mesmo de nascermos? Não podemos ser responsabilizados por nossas ações, se realmente não as decidimos, certo? Se não as decidimos não precisamos de perdão de deus, nem de ninguém... Bom, outra coisa marcante na história de A Cabana é que deus exige que Mack perdoe até mesmo o assassino de sua filha. E Mack perdoa, ou ao menos tenta. Mas o que é perdoar? Perdoar é, segundo o autor, retirar a culpa. Isso faz sentido, segundo a lógica de deus, pois se não somos responsáveis por nossos atos, não podemos ser culpados. Perdoar um assassino é reconhecer que o assassino não é assassino. Está ficando confuso? Bem, o que ele seria então? A resposta óbvia é que o ex-assassino está apenas cumprindo um destino escrito na história que deus já conhecia e que só deus mesmo pode ter escrito. Portanto o responsável primário pelo assassinato é deus. Uma dedução lógica. Mas deus quer que a gente esqueça essa coisa de responsabilidade, de racionalidade, de moralidade. Apenas amem incondicionalmente. Tem alguma coisa cheirando mal, não? Ocorre que o perdoar que deus nos exige não é retirar a culpa. Isso seria um julgamento. Quando aquele deus fala de perdoar, significa abdicar do direito de julgar. Tem alguma coisa realmente cheirando mal, não?

Enquanto caminhavam alegremente sobre a água, Jesus faz Mack parar e chama atenção para uma grande truta nadando no lago. Jesus tenta cercá-la (naturalmente caminhando sobre a água, claro) e diz que faz tempo que está tentando capturá-la, mas não consegue. Mack pergunta por que ele simplesmente não ordena que a truta pule para dentro de sua frigideira. Jesus responde que até poderia fazer isso, mas que não teria graça. A diversão está em tentar pegá-la sem usar super-poderes. Atenção caro leitor! Essa passagem reponde a principal pergunta do livro: por que deus não acaba com os males da nossa existência? A resposta é que guerras, doenças, pobreza e sofrimento são a diversão de deus. Ele poderia acabar com tudo isso, mas qual seria a diversão, então? Aliás, esse deus infalível certamente não errou a mão quando criou o homem. O homem foi criado para tomar as decisões erradas que tomou e continua tomando. As mazelas do mundo humano já estavam todas previstas, foram mesmo planejadas. Sem elas simplesmente não haveria diversão para deus. O coronel poderia simplesmente ordenar o fim das execuções noturnas, poderia mesmo soltar os prisioneiros, mas qual seria a diversão? Que deus amável!

Se fosse possível que todas as pessoas simplesmente adotassem as recomendações desse deus, no dia seguinte estaríamos de volta às cavernas ou às árvores. Voltar à condição anterior ao pecado original é voltar à condição de animais irracionais, é abdicar da nossa humanidade. A humanidade certamente não é perfeita – seja lá o que significaria isso – mas é o que temos de melhor. É preciso ser cego para não enxergar a beleza do que a mente racional humana já realizou. É preciso ter uma mente doentia para declarar que o homem deveria abdicar de sua racionalidade.

Se você leu A Cabana e gostou, ficou extasiado e nem percebeu a maldade que existe nesse texto, então parabéns! Você já está perdendo sua capacidade de discernir entre o bem e o mal, portanto está mais próximo de deus.

06 de abril de 2010

11 de junho de 2007

Sócrates encontra Jesus

de Prometheus
tradução de Geraldo Boz Junior
Texto e Imagem Originais: http://www.unm.edu/~humanism/socvsjes.htm

Sócrates: Bom dia, Jesus, tenho ouvido muito sobre seus ensinamentos maravilhosos. Eu sou apenas um modesto filósofo aqui em Atenas. Falaram-me da sua grande sabedoria e, a julgar pela quantidade de admiradores que o seguem pelas ruas, isso deve ser verdade. Se você puder me conceder alguns minutos, gostaria que me iluminasse com suas respostas para algumas questões que têm me afligido por toda a minha vida.

Jesus: Sou um pescador de homens na minha busca por seguidores. Trago a verdade de Deus para todos os homens. Procura e encontrarás, peça e obterás a resposta, bata e a porta se abrirá para ti.

Sócrates: Há uma questão básica que tem sido sempre a maior em minha mente. Embora tenha sido sempre um obstáculo intransponível para mim, na minha busca pela verdade e pelo sentido das coisas, estou certo que, com sua erudição, você vai achá-la muito fácil e vai me tomar por um velho tolo. Sempre quis viver de forma honrada e nobre, mas parece que só tropecei pela vida sem ao menos saber o que é honra e nobreza. Com meu entendimento limitado, sempre me parece que a vida, mesmo com sua beleza e sua fúria, na verdade, não significa nada. Por favor, me diga: como um homem deveria viver? Qual é o propósito da vida?

Jesus: Servir e reverenciar a Deus.

Sócrates: Qual deus?

Jesus: Só existe um Deus.

Sócrates: Oh, você devia vir morar em Atenas. Aqui, temos vários para escolher.

Jesus: Só existe um deus verdadeiro.

Sócrates: Ah, claro, e qual é o deus verdadeiro?

Jesus: O deus verdadeiro é o Senhor Deus. 

Sócrates: Sim, mas quem é o Senhor Deus? Ou o quê ele é?

Jesus: Ele é o infinito da sabedoria, amor, compaixão, paz e misericórdia. Ele é o criador do céu e da terra e de todas as coisas no universo.

Sócrates: Todas as coisas?

Jesus: Sim, todas as coisas. Ele é onipotente. Ele é o senhor, o controlador e o criador de todas as coisas. Ele é onipresente - nada pode acontecer que ele não saiba com antecedência.

Sócrates: E ele também cria as pragas, guerras, a morte, o sofrimento e o mal?

Jesus: Não! Essas coisas e todos os outros males e tragédias vêm do Demônio, o príncipe das trevas; ou das fraquezas e da natureza maligna do homem. Deus é só bondade, sem traço de maldade; só o bem pode vir de Deus.

Sócrates: E, quem é esse tal Demônio? Certamente deve ser um deus para ser capaz de causar calamidades tão grandes sobre a humanidade. Entretanto, você acabou de dizer que só existe um deus. Você também disse que tudo que existe vem desse Deus. E agora você diz que só o bem vem de Deus e que o mal vem de alguém chamado Demônio. Isso parece uma contradição. Temo que sua religião seja complexa demais para esta cabeça velha compreender. Ainda assim, pretendo ser um estudante persistente e tentar entender, se você puder me ajudar de alguma forma. Por favor, explique: quem é o Demônio e como pode ser que todas as coisas venham de Deus mas também não venham de Deus?

Jesus: O Demônio é um anjo caído que é ambicioso. Ele se rebelou contra Deus e quer destruir todo o seu trabalho.

Sócrates: O que, em nome de Zeus, é um anjo?

Jesus: Um anjo é um anjo.

Sócrates: Claro, claro, é uma identidade. Sócrates é Sócrates. Mas, veja, isso não significa nada para mim, ignorante que sou sobre sua religião. Embora possa ser a verdade mais pura, não tem relação com nada que eu possa compreender. Você poderia comparar o anjo a alguma coisa com que eu esteja familiarizado?

Jesus: Um anjo é um anjo.

Sócrates: Por favor, perdoe minha ignorância. Entenda que não sou a autoridade que você é. Nunca vi nem ouvi falar de anjos. Disseram-me que você teve muitas visões estranhas quando vagou quarenta dias pelo deserto sem comer. Suplico que me conte com que se parecem esses anjos.

Jesus: Eles têm asas.

Sócrates: Assim como os pernilongos. Você poderia ser mais específico?

Jesus: Eles são como pessoas, mas têm asas.

Sócrates: Que mais? Presumo que possam voar.

Jesus: Ah, sim, é para isso que as asas são feitas.

Sócrates: Claro, claro, eu devia ter adivinhado. Você diz que eles se parecem com pessoas. E no que são diferentes dos homens?

Jesus: Eles são muito melhores que os homens... e nunca morrem.

Sócrates: Melhores que o homem? Como?

Jesus: Mais virtuosos e mais poderosos. Muito mais poderosos.

Sócrates: Então são sobre-humanos.

Jesus: Sim. Certamente!

Sócrates: Então eles são sobre-humanos e imortais. Nós, em Atenas, chamaríamos tais seres de deuses.

Jesus: Não! Deus é muito mais poderoso que eles.

Sócrates: Para nós, Zeus também é mais poderoso que os outros deuses olímpicos, mas os outros também são deuses, por definição. Como você definiria o termo deus?

Jesus: Deus é o criador de tudo Ele é todo poder, conhecimento, sabedoria e a epítome da justiça, piedade, compaixão, divindade e paz.

Sócrates: Mas essas qualidades não são necessariamente consistentes. Não é possível para uma pessoa ser justa, pacífica e piedosa, tudo na mesma instância ou situação. Se uma pessoa ou uma nação merece punição pela regra da justiça, deve-se puni-la ou fazer guerra contra ela, mas isto seria uma violação da regra da paz e da piedade. Nenhum ser poderia ter todas essas qualidades porque elas contradizem umas às outras; elas não podem existir juntas na mesma pessoa ao mesmo tempo. É como se um homem tivesse se virado para a esquerda e para a direita ao mesmo tempo e, ainda assim, estivesse inteiro e completo.

Jesus: Deus opera suas maravilhas de maneiras misteriosas.

Sócrates: Parece que vocês têm tantos deuses quantos temos em Atenas, só que vocês não os chamam de deuses. 

Jesus: Não! Deus é todo-poderoso.

Sócrates: Então, a única diferença é o grau de poder?

Jesus: Não. Deus é melhor e mais virtuoso que eles. O pecado é impossível para ele.

Sócrates: O que é um pecado?

Jesus: É um ato de desobediência a Deus.

Sócrates: Deduzo disso que Deus não poderia pecar, pois não poderia desobedecer a si mesmo. E, se o pecado não é possível para ele, não pecar não é nenhuma façanha dele. Assim como não se mover não é façanha alguma para uma pedra. É só uma questão de definição. O que eles fazem esses anjos?

Jesus: Eles entregam mensagens para Deus.

Sócrates: Por que, se Deus é todo-poderoso, haveria necessidade de alguém entregar mensagens para ele?

Jesus: Ele gosta desse jeito.

Sócrates: Então eles são escravos de Deus?

Jesus: Não! Eles o servem voluntariamente.

Sócrates: E o que acontece se eles não o servirem voluntariamente?

Jesus: Houve vários anjos, liderados por Satã, o demônio, que se rebelaram contra Deus e foram banidos do Paraíso para o tormento e a punição eterna.

Sócrates: O que é o Paraíso?

Jesus: É um lugar maravilhoso, nas alturas do céu. Lá, as ruas são pavimentadas com ouro. Lá, tudo é pacífico e bonito. Deus mora lá e todos que creem nele vão para lá quando morrem. Lá, os homens têm vida eterna, têm asas, reverenciam Deus, tocam harpas em eterna harmonia, felizes para sempre. O propósito e o objetivo da vida do homem é ir para o Paraíso quando morrer.

Sócrates: Olha, isso soa parecido com a conversa de quem comeu flor de Lótus. Se este fosse o propósito da vida, não poderíamos simplesmente nos intoxicar com vinho ou drogas e nos sentir no paraíso a qualquer hora, como os mendigos e bêbados que se veem do outro lado da cidade?

Jesus: A Bíblia diz "não abusarás do vinho ou de bebidas fortes".

Sócrates: Se o único propósito da vida do homem fosse ir para Paraíso, por que ele simplesmente não se mata e vai para lá?

Jesus: Não matarás!

Sócrates: Para começar, se Deus quisesse que o homem fosse para o Paraíso, por que o colocou na Terra? Por que simplesmente não colocou o homem no Paraíso desde o começo? Acho difícil de acreditar que o homem, com toda a sua capacidade, seus desejos e complexidades, tenha sido criado meramente para se curvar e para reverenciar. Certamente, não existe, nem nunca existiu, um tirano humano tão frívolo e orgulhoso que quisesse que seus súditos simplesmente se curvassem e o venerassem de forma obsequiosa e subserviente, disponíveis do alvorecer até o pôr-do-sol, solitário para toda a eternidade. Eu entendo muito bem por que Satã quis se rebelar contra essa situação estática, regulada, opressiva e maçante. Pelo que você já me contou, eu teria que me aliar a Satã nessa rebelião, pois, embora me considere um homem humilde, eu não poderia me curvar e adorar, nem cantar preces para um ser que me ameaçasse com punições e tormentos eternos.

Jesus: O Senhor teu Deus é um deus ciumento e não deves ter outros deuses diante dele.

Sócrates: Por que Satã se rebelou? Ele sabia que Deus era tão poderoso, como você o descreveu, e que sua derrota era inevitável?

Jesus: Satã se rebelou porque ele era orgulhoso e queria mandar no paraíso. Ele conhecia uma parte do grande poder de Deus (que era maior que o seu próprio poder), mas ele desejava o poder tão ardentemente que resolveu tentar de qualquer maneira.

Sócrates: Então, Satã certamente foi corajoso, lutando contra um inimigo que ele não podia derrotar.

Jesus: Ele era um pecador porque desobedeceu a vontade de Deus.

Sócrates: Parece, então, que a única diferença entre Satã e Deus é o grau do poder.

Jesus: Deus é perfeito. Ele é onipotente, onisciente e imaculado.

Sócrates: Claro, por definição, ele não peca por que não pode desobedecer a si mesmo. A única diferença real entre os dois é o grau de poder. Portanto, Satã não errou nem pecou ao se rebelar contra Deus; ele só errou ao ser derrotado na rebelião. Pois, se ele tivesse vencido, Deus é que seria o pecador, pois Deus teria desobedecido a Satã, que seria melhor que Deus e outros anjos, porque ele não poderia pecar contra si mesmo e ele é que seria onipotente. Se Satã tivesse vencido, teria se tornado Deus, pela sua definição, porque ele teria sido onipotente e sem pecados. Quem sabe se não foi exatamente isso que aconteceu? Pela sua descrição de Deus, começo a suspeitar que Satã venceu.

Jesus: Deus é mais do que simplesmente poder e completa falta de pecados: ele é justiça infinita, piedade, paz, compaixão e perdão. Satã é impuro, egoísta, destrutivo e maligno.

Sócrates: O que aconteceu a Satã depois que ele foi expulso do Paraíso?

Jesus: Ele foi jogado no Inferno por Deus, para ser atormentado e torturado para todo o sempre. Sócrates: O que é o Inferno e por que Satã fica lá, se é um lugar tão doloroso e desagradável?

Jesus: Deus o trancou no Inferno e não permite que ele saia. Deus criou o Inferno para punir Satã e todos os homens que não tenham fé em Deus. É um fogo incessante de queimadura, tortura, agonia e tormento. Todos os pecadores que não pedirem perdão a Deus e não tiverem fé nele vão para lá para toda a eternidade para serem torturados pelo Demônio.

Sócrates: Se Deus é justo ou piedoso, como ele pode fazer isso para um inimigo que o combateu em batalha? Por que Deus simplesmente não perdoou Satã depois de derrotá-lo, como os homens geralmente fazem com nações capturadas, depois de havê-las derrotado? Parece que os homens são mais piedosos do que Deus, na vitória, pois não tratam os derrotados com tamanhos terrores, nem pelo período de uma vida, muito menos por toda a eternidade. Por que Deus não mostra as qualidades que você descreveu, como justiça, piedade, compaixão e perdão a Satã? Certamente, essa natureza guerreira de Deus contrasta muito com a descrição de um Deus pacífico, piedoso e que perdoa tudo.

Jesus: Deus tem maneiras misteriosas de executar suas maravilhas.

Sócrates: Se Satã está preso no Inferno, como poderia levar pragas e tormentas à Humanidade, e por que Deus permite isso, se ele é onipotente e tão bondoso? Se Deus é todo poderoso, que negócio é esse de ele permitir que Satã sobreviva? Por que não o destrói? Nessa altura da conversa, já imagino se não teria sido melhor que o outro tivesse vencido.

Jesus: Deus permite que Satã saia para que traga pragas e tormentas para a Humanidade, para punir o homem por seus pecados no Jardim do Éden.

Sócrates: O que é o Jardim do Éden?

Jesus: Quando Deus criou o primeiro homem e a primeira mulher, Adão e Eva, ele os colocou no Jardim do Éden. Quando foram criados, eram puros e sem pecado. Foi assim que Deus os criou. O Jardim do Éden era um paraíso bonito, que lhes provia tudo que precisavam. Eles não precisavam trabalhar. Bastava coletar as frutas dos galhos de árvores opulentas. Eles eram inocentes e despreocupados como crianças e não sabiam nada sobre o amor carnal. Tinham um ao outro como companheiro e adoravam e reverenciavam Deus, que sempre os visitava.

Sócrates: Por que Deus criou a humanidade?

Jesus: Porque ele estava só.

Sócrates: Por que ele simplesmente não criou mais alguns anjos, que eram mais seus iguais, em vez dessa forma de vida tão inferior, o homem? Será que ele não queria mesmo escravos servis que ele pudesse observar sentindo medo, reverência e adoração a ele?

Jesus: Uma vez que ele é nosso criador, nós lhe devemos mesmo reverência, adoração e obediência. Sócrates:

Será que o filho de um criminoso lhe deve obediência ou será que tem o direito e a obrigação de julgar por si mesmo, entre o certo e o errado? Que pecado, que ato de desobediência o homem cometeu no Jardim do Éden?

Jesus: No centro do Jardim do Éden, Deus colocou a árvore do conhecimento. Deus disse a Adão e Eva para não comerem os frutos daquela árvore. Satã apareceu na forma de uma serpente e disse a Eva que ela teria grande conhecimento se comesse o fruto. Satã lhe disse que Deus temia que se eles comessem o fruto, poderiam se tornar tão grandes quanto ele. Depois que comeram, aprenderam sobre o amor sexual. Este foi o pecado original.

Sócrates: O conhecimento é algo de que Deus gostaria de nos resguardar? Por que Deus quer nos manter distantes do conhecimento? Será que ele queria nos manter como escravos subservientes, rastejando aos seus pés? Parece-me que devemos agradecer a Satã e reverenciá-lo por sua ajuda. Satã se parece muito com o titã Prometeu, que desafiou as ordens dos deuses e trouxe ao homem o conhecimento do fogo. Por este serviço à humanidade, Prometeu, assim como Satã, foi submetido ao tormento e à tortura eterna. Certamente a vida humana valeria muito menos sem sexo, fogo e conhecimento.

Jesus: Mas Satã estava mentindo para Eva, pois afinal não nos tornamos tão grandes quanto Deus, depois de comer a fruta. Ele mentiu para nós só porque queria destruir o trabalho de Deus.

Sócrates: Se Deus é onipotente, por permitiu que Satã viesse ao Jardim do Éden para tentar Eva? E, para começar, se Deus não queria que o homem comesse do fruto proibido, por que pôs a árvore do conhecimento bem no meio do jardim? Se Deus não queria que o homem fizesse sexo, por que ele o equipou com os órgãos necessários para isso? Se Deus não queria que o homem cometesse o pecado original, por que lhe deu o desejo pelo conhecimento, pela aventura e pelo amor carnal?

Jesus: Deus pôs a árvore do conhecimento no Jardim e permitiu que Satã fosse até lá porque ele queria testar a humanidade.

Sócrates: Você disse que Deus é onisciente, que ele sabe tudo que acontece antes de acontecer. Certamente Deus já sabia como o homem se comportaria nessa ou em qualquer outra situação.

Jesus: Deus deu livre arbítrio ao homem. Ele podia tanto ser virtuoso e obedecer a Deus quanto ser pecador e desobedecer a palavra de Deus.

Sócrates: Deus sabia que o homem poderia pecar?

Jesus: Ele sabia que o homem poderia pecar mas ele lhe concedeu livre arbítrio para tomar sua própria decisão.

Sócrates: Deus não poderia ter criado o homem de forma que ele não pudesse pecar? Não poderia ter criado o homem de forma que ele não pecasse nessa situação particular?

Jesus: Sim, pois se Deus é onipotente, ele poderia ter feito isso, mas ele não queria que o homem fosse um marionete; queria que ele tivesse livre arbítrio.

Sócrates: Deus poderia ter criado o homem com duas cabeças e três pernas ou de qualquer outro jeito que ele quisesse?

Jesus: Deus poderia ter criado o homem do jeito que ele quisesse.

Sócrates: Deus criou o homem do jeito que ele quis? Ele quis que o homem tivesse uma cabeça, duas pernas e que tivesse a aparência que tem?

Jesus: Claro, Deus é perfeito e onipotente. Ele não poderia cometer um erro.

Sócrates: Então Deus jamais errou e criou o homem exatamente da maneira que quis, em todos os sentidos? 

Jesus: Sim.

Sócrates: Então você e eu fomos criados exatamente do jeito que deus quis que fôssemos? E Adão e Eva foram criados exatamente do jeito que Deus quis que fossem?

Jesus: Sim, foi isso que eu disse.

Sócrates: Tudo que é parte do homem veio de Deus?

Jesus: Sim, Deu é o mestre e o controlador, o criador de tudo.

Sócrates: O Demônio ou outra força qualquer criaram alguma parte do homem?

Jesus: Não, Deus é o criador de tudo.

Sócrates: Então, se Deus criou os olhos, pernas e a mente do homem, também criou os desejos do homem, todos os seus desejos, inclusive seu desejo por conhecimento e pelo sexo. Por que os homens pecam?

Jesus: O homem peca por causa de sua fraqueza e sua natureza maligna.

Sócrates: A natureza do homem é parte homem, assim como suas mãos, seus pés são parte do homem?

Jesus: Sim, a natureza do homem é parte do homem.

Sócrates: Quem criou o homem? 

Jesus: Deus.

Sócrates: Quem criou as mãos e pés do homem?

Jesus: Deus.

Sócrates: Quem deu ao homem duas mãos e dois pés e o fez exatamente como eles são hoje, exatamente como eles eram no tempo de Adão e Eva?

Jesus: Deus.

Sócrates: Quem criou a natureza humana?

Jesus: Deus.

Sócrates: Quem deu ao homem sua natureza maligna e suas fraquezas? Deus deu, porque tudo que é parte do homem veio de Deus e só de Deus. 

Jesus: Deus deu ao homem o livre-arbítrio.

Sócrates: Quem decidiu que o homem devia ter duas mãos? O diabo?

Jesus: Não. Deus decidiu que o homem teria duas mãos.

Sócrates: Quem decidiu que o homem teria franquezas e uma natureza maligna? O diabo? Não, foi Deus que decidiu que o homem teria fraquezas e natureza maligna. Se a humanidade é falha, maligna ou fraca, é porque Deus pôs falhas ou fraquezas nele e tinha mesmo essa intenção. Deixe-me contar a você outra parábola. Você alguma vez já viu pássaros matando peixes no mar? Quem pôs isso no pássaro, essa capacidade de localizar o peixe e de matá-lo?

Jesus: O homem tem livre-arbítrio. Deus não o obriga a pecar. Ele simplesmente lhe deu a oportunidade de ser virtuoso ou pecador. O homem não teria valor algum para Deus, se fosse apenas um boneco de marionete, que não pudesse fazer nada a não ser o bem. Ele quis dar ao homem a oportunidade de ser bom ou mau conforme seu próprio mérito, sua própria escolha.

Sócrates: É absurdo que Deus puna o homem depois de criá-lo. É como se um Homero escrevesse uma ode sobre um porco e depois chicoteasse e batesse nas páginas e as condenasse ao fogo eterno porque ele não gostasse das qualidades do animal. Ou como se um mestre da escultura fizesse uma estátua perfeita de um porco e batesse nela por toda a eternidade, porque não gostasse dos traços do animal.

Jesus: Deus não criou o homem com uma natureza má nem predeterminou que ele devesse pecar. Sócrates: Então quem fez isso?

Jesus: Deus criou o homem para ser inocente e naturalmente bom. Deus pôs o homem num paraíso, no Jardim do Éden. Ele deu ao homem livre-arbítrio e permitiu que Satã fosse ao Jardim do Éden para testar a humanidade. Deus não predeterminou que o homem deveria pecar.

Sócrates: Mas Deus criou tudo que levou a essa combinação, situação ou ambiente. Quando ele criou cada um dos elementos ou ingredientes na situação, sabia exatamente como cada um iria reagir aos outros em qualquer circunstância, porque ele sabe tudo. Ele pretendia que cada elemento fosse exatamente como ele era, porque ele era onipotente e não poderia cometer um erro. É como se um cientista ou médico tivesse combinado diversos ingredientes num remédio, que embora fossem inofensivos isoladamente, tornavam-se um veneno mortal quando combinados; e então, depois de administrá-lo no paciente, negar qualquer responsabilidade sobre sua morte. Exatamente dessa forma foi que Deus combinou muitas coisas: um homem inocente, a árvore do conhecimento, um belo jardim e um anjo.

Jesus: Todos pecaram e se afastaram da glória de Deus.

Sócrates: Parece-me que seu Deus Senhor criou o homem meramente para observá-lo sofrer. Esse trabalho de Satã, o Jardim do Éden, o livre-arbítrio, é tudo fachada. Deus só queria uma desculpa para intimidar, perseguir, atormentar e oprimir a humanidade. Se um ser onipotente e onisciente cria tudo e permite que suas criaturas reajam de certa forma, na verdade ele pretendia que elas agissem daquele jeito e é o único responsável pelos resultados. 

Jesus: Não zombe de Deus. Não fale desse jeito ou você vai ser jogado na fornalha na qual você vai ranger os dentes para sempre, atormentado e torturado.

Sócrates: Eu achava que nossos deuses olímpicos eram perversos e irracionais, mas eles parecem mansos cordeirinhos, piedosos e compreensíveis se comparados a esse seu Deus, que atormenta e tortura alguém para toda a eternidade por que essa pessoa fez o que foi forçada a fazer em função de sua natureza e do ambiente criados por esse mesmo Deus.

Jesus: Oh, dê graças ao Senhor porque ele é bom, porque sua piedade dura para sempre.

Sócrates: Por que, se é um deus de paz e piedade, ele atormenta a humanidade e permite e até encoraja e exige banhos de sangue sobre a terra? Por que permite, exige mesmo, que Satã tente e torture a humanidade? Já que você diz que nada acontece sem que ele saiba e não apenas saiba, mas tenha feito acontecer, esse ser todo-poderoso e que sabe tudo e que cria tudo, determina tudo, esse ser tem que saber como suas criações vão agir.

Jesus: Deus deu livre-arbítrio ao homem porque não queria que ele fosse um simples marionete. Deus não queria que o homem pecasse. Deus ficou muito desapontado quando o homem pecou.

Sócrates: Deus não poderia, de forma alguma, ficar desapontado, porque ele conhecia a natureza do homem e de tudo mais que ele criou. Se ele é todo-poderoso, ele pretendia que homem pecasse. De fato, ele o forçou a pecar, quando o criou com certos desejos e certas fraquezas.

Jesus: Isso que você diz é blasfêmia. Deus criou o mundo e todas as plantas e animais para o prazer do homem. Olhe para o lindo mundo à sua volta. Como você pode dizer coisas tão terríveis sobre Deus depois de ele ter lhe dado tanto?

Sócrates: Eu não posso mesmo acreditar nisso. Como poderia um deus tão perverso, sádico e odioso criar um mundo com tanta beleza? Mesmo o homem, com toda a maldade que às vezes parece possuir, tem momentos que exibe uma força incrível, autossacrifício, lealdade e graus variados de qualidades conflitantes como a piedade e a justiça. Seu Deus Senhor não tem nenhuma dessas qualidades. Certamente nunca houve um homem tão vil que fizesse a outros homens o que você diz que seu Deus faz para aqueles que não o respeitam: torturar para todo o sempre. Qualquer homem, não importa o quanto tenha sido enganado, torturado ou ofendido - como Príamo, cujo clã inteiro foi dizimado, ou Agamenon, que foi traído por sua esposa e o amante dela - mesmo esses perdoariam depois de anos ou séculos de tortura ao seu inimigo.

Jesus: Eu sou o caminho, a verdade e a luz. Ninguém vai ao Pai se não for por mim. Creia em mim e tenha vida eterna no Paraíso; renegue-me e sofra a tortura eterna no Inferno.

Sócrates: Se eu aceitasse seu sistema, teria que me aliar a Satã, contra seu Deus, mesmo sabendo que eu seria atormentado e torturado para sempre. A injustiça e a perversidade do seu Deus são chocantes. Eu tenho ouvido falar coisas horríveis sobre sacrifícios humanos em costas distantes, mas tenho certeza que nem eles pensariam em coisas como torturar vítimas por toda a eternidade. Tenho ouvido histórias aterrorizantes sobre monstros, ciclopes e medusas, mas esses monstros são animais mansinhos se comparados às coisas descritas no seu livro de revelações. E você quer me convencer da natureza pacífica, piedosa e perdoadora do seu Deus Senhor.

Jesus: Somos todos filhos de Deus. Deus é nosso pai, não quer que pequemos e nos pune quando o fazemos. Ele é justo e piedoso e só nos manda, seus filhos, para o Inferno, para a danação e o tormento eterno por nossas próprias faltas. Por nossos pecados e nossa volúpia sexual, como Adão e Eva, ele não tem escolha, senão nos punir, pela tortura e o fogo eternos.

Sócrates: Você diz que somos filhos de Deus. Ele é um verdadeiro monstro que tortura seus próprios filhos por terem olhos, pernas e desejos que ele mesmo lhes deu. Que esse diabo malabarista não seja mais acreditado, pois nos engana duplamente e mantém a palavra de promessa aos nossos ouvidos, mas a quebra em nossa esperança. Não vejo propósito, nem razão, nem verdade, nem piedade, nem justiça, nada além de caprichos de um poder cruel. De fato, os seres humanos, apesar de seus caprichos, egoísmo e fraquezas, parecem ter mais qualidades que seu Deus. Seu Deus é demoníaco, sádico, um diabo psicótico.

Jesus: Nós somos meros humanos e não podemos entender os mistérios infinitos de Deus. É nosso dever sermos fiéis a ele, acreditarmos nele e o seguirmos. Não nos cabe perguntar por quê, mas apenas fazer e morrer.

Sócrates: Não nos cabe perguntar? Mas e por que fomos dotados de mentes? Se não nos cabe discutir como viver e qual o propósito da vida, por que estamos discutindo isso agora? Por que você passa sua vida pregando para o povo? Por que você arriscou sua vida desafiando as ordens dos romanos?

Jesus: Pela fé nós somos salvos e que ninguém duvide disso.

Sócrates: Fé? O que você quer dizer com fé?

Jesus: Devemos acreditar sem pedir provas. Não devemos ser incrédulos como Tomás. Se acreditarmos em Deus, seremos mil vezes recompensados por todos os nossos problemas e atribulações, quando estivermos no Paraíso.

Sócrates: Você diz que devemos acreditar em tudo que nos dizem, sem investigar ou examinar; devemos ser ingênuos? Se eu fosse assim, daria minha bolsa para qualquer um na rua que me prometesse devolver, depois, mil vezes o valor dela. Eu seria um tolo agindo da forma que você diz. E você não pede apenas dinheiro, mas que eu dedique minha vida inteira a uma promessa e um propósito sem jamais considerar seus valores. Um ladrão exige meu dinheiro ameaçando minha vida. Você exige minha vida me ameaçando com tortura e me prometendo o paraíso. Eu não sou um manso nem um tolo ingênuo para ser enganado assim por promessas vazias e ameaças.

Jesus: Os mansos herdarão a Terra.

Sócrates: Os mansos são massacrados e são escravizados como as mulheres e crianças de uma nação derrotada.

Jesus: Você não deve questionar Deus!

Sócrates: Eu nunca encontrei esse cavalheiro, portanto não posso questioná-lo. Eu estou questionando você, que se diz representante dele, pois quero saber se realmente o representa.

Jesus: Devemos acreditar na Bíblia, nas Escrituras, na Palavra de Deus. Acreditar sem esperar ser capaz de entender e sem exigir provas.

Sócrates: É impossível para homem não escolher. Você tem noção de que existem milhares de religiões no mundo? Se acreditássemos só pela fé, teríamos que aceitá-las todas. Entretanto, elas todas são diferentes entre si, e aceitá-las todas seria impossível. Seria como acreditar, ao mesmo tempo, que o mundo é redondo e plano. Certamente você não pratica o que prega, pois, neste caso, você aceitaria a religião dos judeus e o Velho Testamento e não teria começado essa sua própria religião herege. E ontem, quando os sacerdotes de Atenas o advertiram para não pregar suas heresias nas ruas, você teria aceitado a religião grega e os deuses do Olimpo, pois estavam aqui primeiro e você deveria acreditar pela fé, já que eles lhe disseram que era verdadeira.

Jesus: Pela fé somos salvos e que ninguém duvide disso.

Sócrates: Deixe-me dar-lhe um exemplo específico. Suponha que o Oráculo de Delfos me contasse que certa pessoa fosse culpada de ter estuprado e matado minha esposa, e que eu deveria matá-lo, ou ele me mataria, temendo que eu descobrisse o seu crime e tentasse matá-lo. Então você me diz "Não Matarás!". Você me diz que eu devo acreditar pela fé em tudo que eu ouvir. Seguindo sua instrução, devo matar o homem, devido à minha fé no Oráculo de Delfos. Entretanto, não devo matar o homem devido à minha fé no Deus Senhor. Mas eu não posso matar o homem e não matar o homem, pois são coisas contraditórias. Portanto, não posso acreditar em ambos. Portanto é impossível acreditar em qualquer coisa só pela fé. Existe uma escolha intelectual que eu, você e todos os homens fazemos, seja de forma voluntária ou não. Devemos escolher no que acreditar. O que você faria? Faria sua escolha pensando, discutindo e considerando todos os aspectos do problema ou negando cegamente que exista a necessidade de fazer uma escolha? Esta escolha é a mais importante na vida de um homem, pois a resposta à questão "qual é o propósito da vida?" determina todo o curso da vida de uma pessoa. Se um homem vai devotar cada movimento seu à sua religião, como você defende, então certamente ele deveria dirigir muito do seu pensamento à questão da escolha da religião. Deixe-me contar uma parábola: se você deve ir de uma cidade até outra numa tarefa que vai consumir sua vida inteira, não seria sábio considerar todas as estradas, já que algumas delas são frequentadas por ladrões? Além disso, verificaria se não existe uma cidade mais próxima e segura para ir, ou, mais importante, se existe mesmo a cidade para onde vou, afinal.

Jesus: Se você deseja honestamente conhecer a verdade sobre Deus, sobre a criação e sobre o propósito da vida, existe um caminho muito simples para descobrir a verdade. Tudo que tem a fazer a pedir que Deus entre no seu coração. Se você quiser sinceramente saber a verdade sobre Deus, o Espírito Santo entrará no seu ser e você se unirá a Deus. Nesse momento, você receberá a paz e o conhecimento do Paraíso; e quando você morrer, irá para o Paraíso e viverá para sempre em felicidade e contentamento.

Sócrates: Desejo muito saber a verdade. O que, exatamente, eu preciso dizer para ganhar este conhecimento e essa sabedoria? Como é que eu falo com ele?

Jesus: Diga, "Deus, entre no meu coração e me dê a sabedoria para entender a verdade".

Sócrates: Quer dizer que simplesmente repetindo isso eu vou ganhar conhecimento sobre o propósito da vida?

Jesus: Sim. O Senhor diz "procura e encontrarás, pergunta e terás a resposta, bata à porta e ela se abrirá para ti". Deus prometeu revelar a verdade para todo aquele que procurá-la.

Sócrates: Deus, entre no meu coração e me dê a sabedoria para entender a verdade!

Jesus: Então está feito. Agora agradeça a Deus por ter dado a vida eterna a você.

Sócrates: Mas não aconteceu nada! Não sei nada mais sobre o propósito da vida do que eu sabia antes.

Jesus: Então você não foi sincero. Você não desejou realmente que Deus entrasse no seu coração e lhe mostrasse a verdade. Você não tem fé que ele entrará no seu coração.

Sócrates: Eu desejo verdadeiramente saber a verdade. Dediquei minha vida inteira ao estudo da filosofia e da razão. Desejo conhecer o propósito da vida mais do que desejo a própria vida. É uma resposta que tenho buscado desde que vi o sol pela primeira vez. A não ser que a encontre, vou continuar a procurá-la até o dia da minha morte. Talvez ele não tenha me ouvido. Devo pedir de novo, mais alto?

Jesus: Você falhou em encontrar a resposta porque não tem fé. Se um homem tem a fé do tamanho de um grão de mostarda, ele pode mover uma montanha e tudo que ele desejar acontecerá.

Sócrates: Isso é impossível. Será que alguma daquelas pessoas que seguiam você hoje tinha parentes ou amigos doentes ou morrendo? Com certeza havia, e com certeza, caso fossem bons cristãos, desejariam que estes amigos ou parentes não estivessem doentes, nem morressem, mas que ficassem saudáveis e felizes novamente. Ninguém vai ser tão tolo de dizer que não tem um amigo à morte. Ninguém vai ser tão insensível de dizer que nunca desejou que o amigo vivesse. Portanto, segue-se que nenhum cristão em todos esses séculos jamais teve fé em Deus, ou então Deus estava mentindo.

Jesus: O Senhor dá e o Senhor tira. Abençoado seja o nome do Senhor.

Sócrates: Vou apresentar uma parábola para provar que nunca houve um cristão ou judeu que tivesse fé; e provar que Deus estava mentindo quando prometeu vir ao coração dos homens para lhes ensinar o propósito da vida. Primeiro, você concorda que o Inferno é pior do que qualquer possível desgraça terrestre?

Jesus: Sim, com certeza.

Sócrates: E, você não disse que todos os homens são pecadores que se afastaram da glória de Deus?

Jesus: Sim.

Sócrates: Todo cristão ou judeu que tenha fé acredita que vai para o inferno se pecar. Permita-me mais essa parábola: cada cristão é como um homem que está no alto de um despenhadeiro. Sabe que se cometer um pecado, cai para a morte, ou pior, para o tormento eterno. Você disse que o Inferno é pior que qualquer punição terrena imaginável. Nenhum cristão pleno de fé jamais pecaria, por pior que fossem seus problemas ou seus desejos, pois isso seria saltar no precipício do tormento eterno. Você disse que todos os homens, inclusive cristãos e judeus fiéis, são pecadores. Portanto, nenhum cristão ou judeu, desde o início dos tempos, jamais acreditou que realmente iriam para o Inferno. Por que se acreditassem mesmo nisso, não pecariam. Não saltariam no abismo se acreditassem que o Inferno e o tormento eterno os esperassem lá em baixo. Todos pulam no abismo. Todos pecam. Portanto nenhum deles realmente acredita em você. Consequentemente, Deus não entrou no coração deles mais do que entrou no meu, minutos atrás. Portando, Deus não tem o direito de exigir que ajam como cristãos ou que tenham fé nele. Portanto, Deus não tem o direito de punir ninguém nem de mandar ninguém para o Inferno. Portanto seu Deus não é justo. Portanto seu Deus não é Deus.

Jesus: Olhe para o mundo à sua volta. Isso não prova que Deus existe? Veja a natureza bela e benevolente que faz você forte e saudável, e lhe dá o sol para lhe aquecer e a floresta e o campo para lhe alimentar. Você não devia adorar a Deus por tudo que ele lhe deu?

Sócrates: É, admito que a natureza é boa e benevolente, mas quem mandou o granizo que quebrou meu telhado?

Jesus: Só porque existe algum mal no mundo, não se pode negar o bem: você deve agradecer a Deus por isso. Deus tem que existir, pois de onde teria vindo o mundo, se ele não o tivesse criado?

Sócrates: Não foi necessariamente o seu Deus que criou o mundo: há milhares de outros sacerdotes que reclamam a autoria dessa obra para seus próprios deuses. Só porque não tenho a resposta, não significa que devo aceitar a sua sem examiná-la. Eu poderia usar a mesma lógica e pedir que você acreditasse que Zeus criou o mundo. E mesmo que eu aceitasse que Deus criou o mundo, esse seria o fim da sua definição das qualidades de Deus e não poderíamos continuar logicamente, a partir disso e assumir que os outros aspectos da sua definição são verdadeiros.

Jesus: Espere, não vá! Você tem que salvar sua alma da danação eterna. Aceite Deus no seu coração. Eu não vou sair enquanto você não aceitar.

Sócrates: Sim. São apenas elucubrações de um velho. Você é que deve estar certo, já que tem tantos seguidores. E quem seria eu, um velho decrépito, para pôr razão e filosofia acima da voz da multidão.

Jesus: Agradeça a Deus por ter lhe dado a vida eterna.

Sócrates já tinha ido.